terça-feira, 9 de dezembro de 2008

Periferia 2.0

Com as Lan Houses, a periferia dá significado real à revolução digital. Por Cid Torquato


Há tempos não escrevo, não renovo meus textos e não exponho minhas idéias, como sempre fiz. Na verdade, estou tão concentrado na minha própria história, na minha reabilitação, na recuperação de movimentos perdidos e no fortalecimento de músculos atrofiados pelo choque medular, que todo o resto me parece desinteressante e secundário ao que hoje realmente me importa.


Hoje, estou concentrado em temas muito específicos, como fisioterapia, terapias ocupacionais, acupuntura, FES, TENS e outras formas de eletroestimulação, ortostatismo, o avanço das células-tronco, tecnologias assistivas, órteses, cadeiras motorizadas e se os lugares onde quero ir são acessíveis ou não. Claro, continuo acompanhando o que acontece no mundo “lá fora”, mas confesso que apenas de canto de olho, com a visão periférica de quem tem na informação sua principal matéria prima.


Porém, nas últimas semanas, algo inusitado me despertou a atenção de uma forma que há muito não acontecia, principalmente tratando-se de tecnologia da informação e internet, as meninas dos meus olhos nos últimos muitos anos.


Fiquei literalmente vidrado no retorno de Regina Casé ao Fantástico, com o quadro Central da Periferia, agora abordando o universo das Lan Houses em favelas e nos subúrbios de cidades e grandes capitais brasileiras. Para começar, fui surpreendido em saber que existem mais de 90 mil Lan Houses espalhadas pelo País, conectando centenas de milhares de pessoas e promovendo, na prática, a tão propalada inclusão digital.


É fantástico - sem muito trocadilho - conhecer as histórias de gente empreendedora, que, sem muitos recursos, está criando verdadeiras centrais de comunicação cibernética, centros de convivência e telecentros de oportunidades, mudando as vidas de comunidades inteiras, nos lugares mais remotos e improváveis.


Quem viu a matéria sobre o visionário de Antares, subúrbio do Rio de Janeiro, que conectou toda a favela com banda larga sem fio, melhorando a comunicação entre seus moradores e deles com o mundo? A experiência é tão emblemática que até a pizzaria local aceita pedidos via MSN, além das experiências reais em web 2.0, com a crescente produção de web-videomakers locais e a digitalização da dinâmica comunitária, com o uso incessante de plataformas sociais, principalmente do Orkut.


Música, design gráfico, games, literatura, fotografia, cursos de informática, idiomas, empreendedorismo e muito mais... As 90 mil Lan Houses brasileiras representam, potencialmente, a maior rede, organizada ou não, de produção e difusão de informação e conhecimento sobre um Brasil que as outras mídias ignoram, um Brasil profundo, esquecido e desconhecido, que, porém, pulsa freneticamente e tem muito a mostrar aos “andares de cima”.


Regina Casé é a cara visível dessa iniciativa inusitada, mas a “alma” low profile da Central da Periferia é, sem dúvida, Hermano Vianna, irmão do Herbert, dos Paralamas, que, sem pavonear, vem se tornando o grande guru desse e de outros projetos paradigmáticos, em geral tendo a internet como principal meio.


Por outro lado, não podemos olvidar que o fenômeno aqui descrito só se tornou possível graças ao tremendo barateamento dos computadores no Brasil, principalmente os “de marca”, beneficiados pela redução de impostos iniciada ainda no Governo FHC e ampliada nesta gestão, que também desfrutou do dólar barato, até o estouro da bubble imobiliária americana. Por isso, as vendas de PCs explodiram nos últimos anos, batendo impensáveis 12 milhões de unidades – quase 5 milhões de notebooks – em 2008.


O impacto dessa explosão poderia ser ainda maior caso mais computadores corporativos fossem reciclados, tornando ainda mais acessível sua aquisição pelas periferias e favelas ainda mais profundas deste Brasil afora. Esse índice, infelizmente, ainda não chega aos 40%, mas não tenho dúvidas de que o bom senso das empresas e a pressão dos ainda milhões de “descomputadorizados”, provavelmente através do próprio ecossistema de lan-houses, mudem essa realidade no futuro próximo.


É isso aí. Enquanto os “bacanas” não param de “masturbar” os seus gadgets e periféricos de última geração, a periferia dá significado real à revolução digital, reinventando o seu papel e relevância neste país tão injusto.


*Cid Torquato é advogado e consultor especializado em Economia Digital. E-mail: cid@torquato.org .

Nenhum comentário: